quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Conto publicado na revista Idiossincrasia do CEFET-BA


Por um sonho... Uma infelicidade


Lennon Pereira


...Era mais uma noite que passava acordado. Aquele frio batendo de lado, quase que congelando o coração, me fazia tremer de horror, de uma falta que me rançava a alma, mas uma vez. Aquele vazio da fome tava tão forte que me fazia delirar, chorar.


Em meio a tudo, acabei adormecendo e no outro dia acordei com a mesma sensação que me atormentava parte da noite, pra não dizer ela inteira! Como não tinha jeito, saí para arranjar alguma coisa, já que meus irmãos pequenos ainda se encontravam dormindo, - coisa que me sossegava, pois assim passariam, mesmo que por curto tempo, sem sentir a tão dolorosa vontade de comer sem ter algo para comer – e minha Mãe já tinha saído para aquela casa grande, onde passava o dia inteiro por uma merreca no fim do mês.


Mas aquela manhã estava diferente. Andei bastante pela comunidade e acabei esbarrando com o Dr. Pedro, homem bom e de influência. Ao ver minha cara de pano de chão esfomeado, perguntou-me sobre minha Mãe. Respondi a ele quase que implorado uma meia dúzia de pão. Ele com sempre gentil, me levou à padaria daquela esquina estreita, e me pagou um pão duro que desceu como pudim.


Voltei para casa com exatos três pães que dividir entre o Edu, a Jurema e a Maria. Mas o que me chamou à atenção foi o olhozinho da Jú, que se encheu de lágrimas ao ver aquele tão grato, mas mísero pão. Passei o resto da amanhã pensando no que iria fazer para o almoço, mas como sempre, nada vinha em minha mente. Nas badaladas daquele relógio empoeirado que achei na rua com o Léo, estava quase que em desespero, pois a Mãe não chegava e os meninos já estavam a perguntar pelo “almoço”.


Em meio às horas se passando, lá do quintal ouvi baterem na velha porta de compensado. Para minha surpresa era o tão bondoso Dr. Pedro, que não sei como descobrira meu endereço, mas estava ali plantado à porta sorrindo.


Surpreso, perguntei-lhe se havia acontecido alguma coisa com a Mãe. Ele me tranqüilizando, falou que não era nada, mas que viera aquele barraco para ver como eu estava, e para fazer uma proposta. Eu, sem palavras, com aquela vergonha de receber um cara tão importante em uma mísera sala com simplesmente uma mesa e três cadeiras de Sucupira, o convidei para se achegar.


Ele falante, eu acanhado, passamos cerca de meia hora conversando. Quando era cerca de 11:40, o Dr. me convidou para almoçar em sua casa - essa altura a Mãe havia chegado, e pelo jeito não conseguira nada - , e eu quase que ajoelhando para agradecer a Deus, aceitei. Fomos todos a caminho da felicidade, era um dos dias mais feliz da minha vida.


A Mãe como sempre desconfiada, não gostou muito da idéia. Mas a casa era linda, uma bancada enorme, tinha cadeira pra todo mundo e foi muita fartura. A conversa foi fluindo, e a Mãe já estava até conversando. E quando todos nós terminamos, a Jurema e a Maria foram brincar no jardim; o Edu foi com a dona Cássia, a governanta da casa, conhecer o filho dela, o Juninho que estava nos fundos da casa.


Quando todos saíram, o Pedro olhou para mim e a Mãe e falou que se emocionou muito com nossa vida. Uma mãe que tentava sustentar seus quatro filhos como empregada em uma casa, - e como muitas outras não estava conseguindo – e o seu filho mais velho, ao ver a situação, saíra também de casa em busca de um meio para suprir a falta da família.


A Mãe sorriu acanhada, e eu sem falar nada, continuei a ouvi-lo. Ele falou que ajudara muita gente que se encontrava em nossa situação. Eram calçados, comida, vestimentas básicas que para ele era tão abundante, mas que para muitos era raro. Ele então, falando de suas vivências, revelou que poderia nos ajudar; Candidatara-se a prefeito na semana anterior, e precisava de pessoas para trabalhar na sua campanha, e eles seriam as pessoas certas, pois eram maiores de 18 anos e precisavam ganhar dinheiro.


A principio achei meio estranho. A Mãe olhou-me com um olhar esperançoso. E o Dr. Pedro logo continuou prometendo-nos melhoras de vida. E então fantasias de fartura me vieram à cabeça; a Jú em fim ganharia a boneca da vitrine da loja “Princesa”, o Edu ganharia a tão sonhada bola de couro para fazer inúmeros gols e a Maria...haaa Maria... ganharia o tão sonhado colchão novo, que por muito tempo era objeto do seu sono, perturbado pelas dores na coluna e pela fome.


O Pedro pelo telefone chamou seu assessor, o “chato” Carlos, que logo veio bajular seu superior. Eles falaram à Mãe que era compromisso sério, que era preciso assinar a papelada para que recebessem parte do dinheiro do mês, e os panfletos para que começassem a trabalhar. A Mãe pensou por alguns segundos e com cara de decepção, disse que não poderia aceitar o trabalho, pois trabalhava há anos na casa da família Medeiros e não poderia deixar um trabalho “fixo” por um “temporário”, mesmo este sendo muito lucrativo, pois o que faria após o término das eleições?!


Foi então que começaram as propostas de que “após” as eleições a Mãe e eu ganharíamos um emprego na prefeitura, e que tudo iria melhorar. Eu seria o porteiro e a Mãe, como já tinha experiência, chefiaria o departamento de serviços gerais.


A proposta foi tentadora, e a Mãe coitada, como estava farta de tanto trabalhar e mesmo assim sequer ter o que dar aos filhos, acabou aceitando. Saímos de lar com uma enorme esperança no peito. Poderíamos agora pensar em pelo menos um almoço decente todos os dias. A Jú e o Edu iriam para a escola de dona Portela. Eu conquistaria a Camila e poderia levá-la para tomar sorvete na pracinha da comunidade. Tudo seria melhor dali por diante, era um sonho que eu não queria acordar, e tudo isso só por “bondade” do Dr. Pedro, homem íntegro que se candidatara para defender e melhorar a vida de pessoas como nós.


No dia seguinte, me lembro como ontem, 17 de agosto, a Mãe pediu as contas da casa dos Medeiros. Foi um barraco, a megera da Lili xingou a mãe toda, falou que era uma ingrata, que era uma oportunista, que não sabia valorizar a ajudar que lhe tinha dado ao empregá-la em sua lisonjeada casa. A Mãe voltou para casa chorando, e eu logo a consolei lembrando que tudo isso iria ser recompensado quando estivéssemos trabalhando e conseguindo levar uma vida digna.


Depois de dois dias o assessor do Dr. Pedro veio nos entregar o material da campanha juntamente com metade do salário do mês, para que começássemos a trabalhar e suprir as primeiras necessidades. Foi uma alegria só; compramos quase tudo de comida, e a mãe fez uma comidinha boa como nunca tinha feito antes.


Começamos a trabalhar logo pela tarde. O Sol era de rachar, mas estávamos felizes em fazer aquela função de alertar ao povo do primeiro político honesto que iria honrar por nossos votos e nossas necessidades. Conhecíamos muita gente na comunidade, contávamos nossa história e íamos comovendo e convencendo todo mundo a votar no Doutor que fizera da nossa vida maravilha.


Mas quando chegou à hora de recebermos a segunda parte referente à campanha, começaram a acontecer coisas estranhas; não encontrávamos mais o assessor do Doutor, procurávamo-lo todos os dias no comitê do partido, mas ele sempre tinha saído ou não viera trabalhar no dia. A coisa começou a nos aborrecer, não tínhamos mais dinheiro e começaram a faltar coisas básicas, como papel higiênico e arroz. Foi necessário ir atrás de Pedro para resolver a situação; ele desculpou-se e disse que iria enviar o dinheiro para a gente em casa, e que iria chamar a atenção de Carlos.


Duas horas após chegarmos em casa, parou um carro na porta. Era Carlos que se desculpando, entregou-nos uma cesta básica e 1/3 do que deveríamos receber em dinheiro. Estranhei a cesta e perguntei, afinal não havíamos combinado nada disso, o que receberíamos era tudo em dinheiro. Mas desconversando, ele disse fazer parte do trato.


Continuamos com o trabalho arduamente. Começamos a sair da comunidade e buscar novos votos. Faltava pouco para as eleições, e tínhamos que eleger de qualquer jeito o Doutor, pois só assim teríamos a tranqüilidade de estarmos em um bom emprego e conseqüentemente ter uma vida melhor.


Para a nossa alegria e angústia, as eleições chegaram. Faltando pouco para as decisões das urnas, já havíamos conquistados muito mais votos do que esperávamos. Dr. Pedro fazia carreatas que levavam o povo ao delírio, era uma festa só.


No dia 05 de outubro de 1999, após muito trabalho de campanha e dedicação o Dr. Pedro foi eleito prefeito de Ribeirinhas. Foi uma festança só, lembro que eu e a Mãe compramos fiado no brechó de dona Filomena roupas para a comemoração. Deixamos os meninos com a vizinha e fomos curtir a festa. Eu convidei a Camila para ir comigo, e no meio da festança eu a beijei pela primeira vez. Foi um dos dias mais feliz da minha vida.


Dias depois da festança fomos ao encontro do Doutor, que nos havia prometido os trabalhos na prefeitura. Mas a partir desse momento sentir que tinha algo de estranho do ar; ele nunca se encontrava em casa ou no comitê; passamos a procurá-lo em toda parte, e todo lugar que a gente ia a resposta era sempre a mesma, que ele não está ou simplesmente está viajando.


A coisa começou a ficar grave, não havia mais nada em casa, a dona Filomena vinha todos os dias cobrar as roupas que compramos para a comemoração; nossa vida de conto de fadas reduziu-se a desgraça novamente. E em um ato de desespero, eu invadi a casa do Dr. Pedro para saber o que estava acontecendo, por que não recebemos respostas dos empregos prometido? – além do que não havíamos recebido a última parte do salário da campanha – Estávamos passando necessidade, sendo que havíamos trabalhado muito e o resultado das urnas devia-se ao árduo trabalho que eu e a Mãe desenvolvemos em toda cidade.


Mas para minha surpresa fui recebido da pior maneira possível. O Doutor gozando de suas mordomias de prefeito fez-se de desentendido perto dos seus colegas burgueses e disse que não havia prometido nada a minha pessoa, que nunca tinha me visto mais gordo. Insultou-me como se eu fosse um reles carente da comunidade e que queria algum proveito da sua vitória nas eleições. Diante de tanto desaforo, comecei a gritar, escandalizar o que aquele infeliz havia prometido. A esperança do emprego na prefeitura, as propostas que fizeram à Mãe renunciar ao emprego da casa dos Medeiros; o que iria fazer agora? Como eu havia de sustentar a família sem o emprego prometido?


Após ser posto a ponta pés para fora da casa do insano, cheguei em casa arrasado! Lembro-me do olhar da Mãe de esperança de que eu tivesse encontrado o Dr. Pedro; o tão bondoso Pedro que fizera ela perder o único emprego para se aventurar em sua campanha eleitoral. O mesmo Pedro que fizera eu iludir os meus irmãos sobre falsas ilusões de uma vida melhor.


Me corta o coração lembrar do Edu me perguntando pela bola de couro que eu havia lhe prometido; a Jú olhando para a boneca na vitrine da loja Princesa; a tão pequena Maria queixando-se da coluna com dor, e o que é pior, eu olhar para a Mãe e perceber que está chorando, se remoendo pelo erro que "cometemos".


Mas agora, o que realmente me incomoda, me fere e me deixa o pior caco do vaso que caiu da mesa, é olhar para os meus irmãos dormindo com fome, prestes a acordarem, sem nada ter para comer em casa; e eu aqui, pensando no que fazer para reverter essa situação; tendo as mãos atadas enquanto, a Mãe coitada, procura emprego nas casas, nas lojas e sempre levando portas na cara.


Agora fico intrigado com uma coisa. Será que é tanto erro assim querer uma vida melhor? Por que teve que ser assim? Que vantagem ele levaria em não empregar uma família que precisa sobreviver? Respostas para essas questões sinto que não há. O que há é um mundo bandido, na qual quem "vence" são os mais fortes, os mais articulados, o mais espertos, os mais "banais"!


Hoje ainda vivo uma ilusão, a ilusão de uma vida melhor, a ilusão de poder dar o que comer a Mãe, a Jú, o Edu, a Maria e ainda a minha esperança, porque por mais árdua que seja minha caminhada para um mundo melhor, eu estarei aqui, apito a arriscar, preparado para enfrentar desgostos, mas certo de que um dia essa vida tão almejada e justa não seja uma Utopia, mas sim uma realidade.

3 comentários:

Liborio's disse...

Veio Parabéns texto grande e inteligente...

Lennon disse...

Brigadooo negão...

Johacia Oliveira disse...

VALEU LENNON..
BOTOU PRA LÁ NESSE TEXTO..
PARABENSSS