quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Texto enviado ao CNPQ

Macambira, 21 de agosto de 1999


À esse mundo injusto e desigual,


Desde pequena, aos embalos dos contos de Cinderela e Bela Adormecida, acreditava em uma vida encantada. À medida que fui crescendo, descobrindo os desejos e angustias da juventude, percebi que não era mais tão simples assim, se tratava de um mundo desconhecido, no qual fiquei perdida sem saber onde estava.


Em casa, quando pai chegava, era sempre do mesmo jeito. A mesa era posta pela tia Filomena, eu ia ajudá-la e o pai – sempre sério – dirigia-se ao quarto, onde tomava seu banho e trocava de roupa. Mesa posta, o silêncio pairava, era aquela monotonia, não havia conversa, não tinha carinho, não tinha nada.


Aquela situação mexia com minha alma. A mãe que perdi tão cedo não estava mais aqui para me ouvir, tirar dúvidas. Pai, ou posso dizer simplesmente Sebastião, nunca se fez presente em minha vida. Durante minha infância o Rafa, meu irmão, sempre foi o predileto do Sebastião. Era só com ele que meu pai brincava, era só ele que podia saí pra brincar, e eu sempre enfornada em casa! Não constituí amigos, simplesmente servi de marionete da casa.


Todas às manhãs eu sempre acordava cedo pra comprar o pão. Era sempre o mesmo sentimento, uma angustia que me apertava o peito ao abrir o portão e me ver na obrigação do fazer para os outros.


Ao chegar o pai já se encontrava de pé, e o meu irmão, como sempre, dormindo das noitadas, das baladas. E na minha sina ia por a mesa do café e lavar os pratos da noite anterior. Engraçado; que eu não conseguia comer enquanto os dois ainda se encontravam na mesa, – meu Deus, pode até ser pecado – mas é sempre mais forte que eu, sinto nojo.


Passa o dia, e eu não sinto que existo - não que esteja morta, deus me livre -, mas porque não acontece nada de novo na minha vida. Só escola, jantar, louça, almoço, café. Nada mais.


O que ainda me faz ter ânimo para ir as aulas é a Marcinha. Nossa, é muito bom conversar com ela, os gatinhos da sala 02 (risos...). Ela é um pouco diferente de mim; – aliás, acho que por causa do clima aqui em casa, sou muito careta – ela fica com um mais lindo que o outro toda semana. Confesso que tenho inveja, mas jamais terei tamanha coragem.


Fico pensando, será até quando viverei assim? A vida de todo mundo é uma maravilha, por que a minha tem que ser assim?


“Véi”, não consigo conversar com o meu pai! Sei que ele é homem, e que não leva jeito para conversar sobre assuntos de mulheres, mas pelo menos ele poderia chegar até mim e aconselhar a não engravidar, a me cuidar, e um monte de Blá..blá..blá que toda garota de minha idade odeia, mas que eu daria tudo por um pouco de atenção.


Sei que minha mãe morreu cedo, mas bem que o Rafa também poderia cooperar. Poxa, é só nós dois de irmãos, poderíamos ser mais unidos, ele poderia não me procurar só na hora de conhecer alguma amiga minha. Mas o que acontece é o contrário... Ele só me esnoba, diz que eu sou uma oferecida que fica com um e com outro - Engraçado, ele me vigia o tempo inteiro, sabe que eu não faço nada, e ainda fica me atazanando-.


O pai é outro tradicionalista. Na minha primeira menstruação, quando fui correndo no maior medo de está morrendo, ele friamente me disse que estava ficando moça, e que era pra eu tomar cuidado, pois ele não iria sustentar filho de ninguém.


O que me revolta é querer sair às vezes com a Marcinha e sempre ouvir a mesma coisa:

- Já vai arrumar homem é?


Fico puta... O meu irmão sempre pode sair para onde ele quiser e só eu que não posso nada! Tenho que ficar em casa, vivendo o meu conto de borralheira, servindo e passando.


Às vezes me dá vontade de sair correndo, enfiar a cabeça na terra, sumir nesse mundão! Mas vou viver de quê? De brisa não dá.


Em meio a tanta desgraça, nas últimas semanas surgiu uma luz no fim do túnel, pra falar a verdade a luz não é luz, é o Ricardo... Haaa... Ele é lindo, não consigo tirar ele da cabeça. No intervalo ele veio falar comigo, eu quase morri (está certo que era pra perguntar as horas, mas já é um bom começo).


Agora estou decidida! Já que sou taxada de sem que fazer, que fico correndo atrás de homens com a Marcinha, darei motivos para isso. No dia da aula de Ed. Física arrumei um pretexto para ficar no time dele de vôlei. Foi à melhor coisa que já tinha feito, fiquei logo amiga dele.


No outro dia já estávamos todos enturmados! Eu e Marcinha conversamos com ele e outros amigos durante o intervalo inteiro. A ”Cinha”, como sempre não perdeu tempo, marcou logo de sair com o Júlio, e eu, no meu conto de Cinderela no ritmo de tartaruga continuei a almejar o Rí (Olha, até arrumei apelido para ele).


Mas essa alegria toda só durava até eu chegar em casa. Era um inferno toda vez que chegava a hora do almoço. O Rafael fazia minha caveira para o pai! Ele por sua vez nem me ouvia, ia logo me esculhambando; que ele não tava para sustentar filha vadia, que se eu arrumasse barriga iria parar na rua, que ele não iria sustentar filho de ninguém. Era um inferno, todo dia a mesma coisa; o meu irmão sempre rindo pelos cantos – Claro, ele podia comer as irmã dos outros por aí, só que a dele tinha que ter vocação para Madre Pérola. Simplesmente patético.


Tudo isso me fez tomar mais raiva dos dois. Nos outros dias cheguei ao colégio revoltada. Até quem um dia chamei o Rí em um canto e tasquei-lhe um beijo. Ele surpreso me beijou novamente, e assim quebrei o meu medo. Foi o primeiro de muitos dias bons. Comecei a namorá-lo.


Os dias estavam mais tranqüilos. O Rafael sabe se lá por que parou um pouco de pegar no meu pé. O pai não reclamava tanto, aparecia o paraíso! Mas um inesperado aconteceu, eu quando fui limpar o quarto do pai como de rotina, me debati com o Rafa pegando dinheiro do pai. Ele quando se virou e me viu, quase caiu de costas! Pediu-me para que não contasse nada, que era por uma causa “justa” (ele havia feito uma dívida de jogo e precisava quitar).


Eu agora estava no comando. Ele implorava todos os dias, me fazia promessas, que não interferiria mais nos meus namoros. Que me deixaria em paz. Porém, para sua surpresa o pai deu por falta do dinheiro.


O pior é que ele me acusou! Falou que só poderia ter sido eu que apanhei o dinheiro, que era uma traíra, que havia criado uma cobra pra lhe picar. Eu tentei me defender, só que ele não deixava. Mas o que mais me magoou nessa história toda foi à reação do meu irmão – se é que posso chamar aquilo de irmão -. Ele apoiou o meu pai, falou que só poderia ser eu que roubei o dinheiro, já que ele não havia pegado nada. Falou que eu merecia ser punida, que não era digna de ser sua irmã!


Para minha surpresa – afinal, meu pai sempre foi bruto, mas nunca violento -, fui espancada com crueldade. O pai que mesmo nos fundos e barrancos eu admirava, pois era trabalhador. Fui posta para fora de casa com uma mão na frente e outra atrás.


Todos viraram as costas para mim, exceto a Marcinha e o Rí. Eles me acolheram e eu acabei me casando com o Rí. Hoje, avalio os meus filhos como sendo a melhor coisa que constituir na vida. Tenho dois filhos, a Jú e o Léo. Ele é um menino com 17 anos e ela com 15. Trato os dois de maneira igualitária, por que sei, por experiência própria, que nunca se pode ser submissa a ninguém. O Léo respeita a irmã como ninguém – e aí dele se não respeitasse-.


Mas o que tiro de lição nisso tudo é fortalecimento. Aprendi a me impor, ser corajosa, e mais do que tudo, justa. È difícil viver nesse mundo machista, na qual a mulher nunca é valorizada, mas tenho certeza de que se fizermos acontecer, conseguiremos chegar a uma sociedade mais justa e tragável.


Espero sinceramente que as minhas experiências aqui relatadas sirvam não só de lição, mas de incentivo à quem se sente oprimida por esse mundo medíocre e insensato.


Atenciosamente,


Borralheira.

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